15/01/2025
Sem categoria

‘Chega de Saudade’ faz 60 anos ainda envolta em dissenso sobre origens da bossa nova

Estudiosos reveem leituras sobre autenticidade e raízes do ritmo disseminado por João Gilberto e Tom Jobim

Resultado de imagem para bossa nova faz 60 anos
A partir desta terça (10) uma atraente sexagenária, a bossa nova ainda brincava de boneca quando foram publicadas as primeiras tentativas de entendê-la.Desde esses pioneiros esforços, concentram o debate os ondes e os porquês da origem do gênero e sua autenticidade à luz da identidade nacional.

Afinal, a bossa veio do samba? Negou-o? Adaptou-o ao jazz? Ou depois o influenciou?
João Gilberto e Tom Jobim —e Newton Mendonça, Vinicius de Moraes, Nara Leão, Johnny Alf…— homenagearam as raízes tupiniquins ou as renderam ao imperialismo?

“Setores conservadores afirmavam que ela tomava do jazz, e outros defendiam que se apresentava como alternativa moderna”, resumiu Fabio Saito dos Santos em “Um Estudo Sobre as Influências do Jazz na Bossa Nova”, tese de mestrado em 2006, na Unicamp.
Reportagens, crônicas, livros; muitos deram pitacos sobre a gênese da revolução, que faz 60 anos nesta terça (10).
Foi neste dia, em 1958, que João Gilberto gravou o compacto de “Chega de Saudade”. Exatos quatro meses depois, ele gravaria outro, “Desafinado”.
“Nunca antes um acontecimento no âmbito da nossa música popular trouxera tal acirramento”, descreveu o musicólogo Brasil Rocha Brito em ensaio publicado em “Balanço da Bossa e Outras Bossas” (Perspectiva, 1969), livro organizado pelo poeta Augusto de Campos.
Este, aliás, identificava na inovação um misto de respeito à velha guarda e subversão da ordem estabelecida.
“O resultado é um livro de partido. Contra a Tradicional Família Musical. Não contra a Velha Guarda. Noel Rosa e Mário Reis estão muito mais próximos de João Gilberto do que supõe a TFM”, escreveu.
Já em seu “Música Popular, um Tema em Debate” (Editora 34, 1966), o crítico José Ramos Tinhorão reuniu textos publicados na imprensa nos quais detonava a novidade por sua suposta devoção à música americana.
“Filha de aventuras secretas de apartamento com a música norte-americana —que é, inegavelmente sua mãe—, a bossa nova vive até hoje o mesmo drama de tantas crianças de Copacabana: não sabe quem é o pai”, escreveu em um artigo, em 1963.
A leitura de Tinhorão foi influente nas primeiras décadas do pós-bossa —e sabe-se lá o quanto terá colaborado para o precoce ocaso do gênero, que dos anos 1970 aos 90 ficou praticamente restrito a espasmos no exterior.
Sob o benefício do tempo, contudo, essa genealogia ganhou revisões.
Para Ruy Castro, as análises que atribuem valor negativo à comunhão entre bossa nova e jazz derivam de equivocada negação da ordem mundial vigente desde a Primeira Guerra Mundial. Potência militar, econômica e cultural, os EUA disseminaram o gramofone e popularizaram até certos instrumentos, como o saxofone.
“Como qualquer música popular no século 20, ela foi influenciada pela sonoridade americana em geral, não pelo jazz especificamente”, diz.
O escritor e colunista da Folha ressalta ainda que o fato de o samba assimilar tão bem outras influências abriu margem para leituras equivocadas de que a bossa se escorava em um estrangeirismo.
“‘Aquarela do Brasil’ (1939) já tinha uma big band de suingue no fundo, e ninguém se sente agredido por isso.”
Crítico de música erudita da Folha, Sidney Molina reforça a memória de que o contato do som brasileiro com o americano precede Gilberto-Jobim.
“Os arranjadores brasileiros pré-bossa, como Radamés Gnattali, sabiam como funcionavam as big bands americanas, e Carmen Miranda já levara aos EUA violonistas como Garoto”.
Para ele, “não há purismo nacional nem gringo na bossa, ela é fusão; algum problema?”
Além de negar o furto de atributos do jazz, Ruy Castro crê que foram erradas tanto a leitura de que o estilo teria rompido com o samba-canção quanto a de que teria representado uma síntese ideal da música brasileira, análise embebida no ufanismo daquele Brasil que, sob a presidência (1956-1961) de Juscelino Kubitschek (1902-1976), vislumbrava um outro futuro.
“A bossa nova não veio de nada nem de ninguém, ela veio de si mesma; sua origem está na rica variedade da música brasileira.”
jeito de cantar e tocar de João foi fruto, diz, da vontade de interpretar a seu modo suas canções preferidas: os sambas feitos a partir de “Jura”, tema escrito por Sinhô e gravado em 1928 por Mário Reis, espécie de batismo fonográfico do gênero.
Para demonstrá-lo, o escritor incluiu na quarta edição de seu livro “Chega de Saudade – a História e as Histórias da Bossa Nova” (Companhia das Letras, 1990), em 2016, um levantamento com mais de 600 canções desde o final dos anos 1920.
Autor de livros como “Copacabana – a Trajetória do Samba-Canção” (Editora 34, 2017), o jornalista e escritor Zuza Homem de Mello também nega a ideia de uma ruptura com as tradições.
“A bossa veio como um sucessor do samba-canção. Foi a solução encontrada pelo João para fazer o violão soar diferente dos outros violonistas.”
Uma evolução natural, portanto, que “simplificou o ritmo do samba e incrementou sua harmonia”, na síntese de Alessandro Borges Cordeiro, professor da Universidade de Brasília.
Autor do ensaio “Balanço da Bossa Nova” (1969), Julio Medaglia ressalta, por fim, que o nascimento da bossa conectava-se à arte da época.
“A economia de elementos lembrava a nouvelle vague: poucos atores, poucas falas e ações. Ecoava Niemeyer: tudo branco, simples, com poucas linhas. E também a poesia concreta: duas ou três palavras compondo um poema.”
Ele remonta o que sentiu ao ouvir pela primeira vez a aniversariante “Chega de Saudade”. “Eu me lembro até da rua em que estava quando senti o impacto desse bandido na minha alma. Foi uma implosão silenciosa.”
Fonte: Folha de São Paulo 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.