- Em palco distante da Sapucaí, agremiações que já fizeram história superam adversidades para manter as tradições do samba
- Vizinha Faladeira desfilará na última divisão do carnaval
- Enrolar a bandeira: drama do qual as escolas fogem
RIO – Ainda do lado de fora, o som de clássicos, como “Sublime pergaminho” (1968), “Mar baiano em noite de gala” (1976) e “Lua Viajante” (1982) convidava a entrar. Lá dentro, a quadra simples, mas cuidadosamente ornada com as cores vermelho e ouro, abrigava gerações de sambistas, dos cabeças brancas a pequenos aprendizes. Ao longo da noite, rituais repetidos há décadas emanavam ancestralidade. E apesar de um temporal de madrugada que já alagava as ruas do entorno, a festa continuava correndo solta. O ensaio da última sexta-feira na Unidos de Lucas — escola que há 37 carnavais não figura no desfile principal da folia carioca —, comprova que, nem com tanto tempo longe dos holofotes, as bases da agremiação não se perderam: celeiro de bambas, guardiã da cultura do samba e agregadora de uma das comunidades mais carentes do Rio, a de Parada de Lucas, no subúrbio da Leopoldina.
Um ato verdadeiramente de resistência. O Galo de Ouro, como a escola é conhecida, supera as adversidades da Série B, a terceira de cinco divisões do carnaval carioca. Desfila na Estrada Intendente Magalhães, no Campinho, palco pouco badalado da folia, mas onde também apresentam suas glórias muitas outras agremiações que fizeram história no passado, como Em Cima da Hora, Vizinha Faladeira, Unidos da Ponte, Unidos do Cabuçu e Lins Imperial. Lucas, por exemplo, remonta aos primórdios das escolas de samba. Fundada em março de 1966, surgiu da fusão da Aprendizes de Lucas (de 1932) e da Unidos da Capela (de 1933). Ambas que, nas décadas de 1950 e 1960, dividiam a posição de quinta força do carnaval carioca, atrás das quatro grandes (Portela, Mangueira, Salgueiro e Império).
A festa de sexta-feira passada na escola era especial. A agremiação comemorava o aniversário de sua rainha de bateria, Katia Lepletier. E recebia como convidada a Vizinha Faladeira, a campeã do carnaval do longínquo ano de 1937. Um encontro que só podia se transformar numa ode às tradições do samba. Enquanto baianas rodopiavam e passistas de todas as idades requebravam, aos poucos figuras importantes das duas agremiações eram chamados a formar um círculo na quadra. Abriam espaço para os mestres-salas e porta-bandeiras. Um por um, sete casais se apresentavam, levando o pavilhão para ser beijado por todos da roda. Entre a dança de uma dupla e outra, ocorria o rito da troca de bandeiras, com dois ou até mais casais dançando juntos, ao mesmo tempo.
Nessas liturgias que vêm se apagando nas agremiações mais ricas que Lucas se vale. Na disputa de samba enredo, por exemplo, cada grupo de compositores tem que entregar também um samba de quadra, gênero cada vez mais esquecido nas grandes. Mas
dinheiro é escasso. A vermelha e ouro tem orgulho de dizer que não tem ajuda de poderes paralelos, como o tráfico e a milícia — triste fim de muitas escolas de menor poder aquisitivo. De subvenção, por exemplo, o Galo de Ouro recebeu este ano cerca de R$ 85 mil (quase 65 vezes menos do que recebe uma agremiação do Grupo Especial), embora tenha um carnaval orçado em cerca de R$ 150 mil. Para arrecadar a diferença entre o que recebe e o que gasta, o velho livro de ouro já não existe. Mas a prática de pedir ao comércio permanece. Hoje, a escola recorre às vaquinhas. Foi assim, por exemplo, que foram feitas as alinhadas camisas que usam os integrantes da diretoria.
— Pedimos material. Reciclamos, transformamos as fantasias já usadas em novas. Contamos com a ajuda de outras agremiações. E até pegamos empréstimos. Mas resistimos. E não recorremos, por exemplo, ao artifício do funk na quadra — conta Eduardo Hollanda, um dos jovens integrantes da agremiação, que nos últimos anos vem rejuvenescendo.
— É uma escola de velhos. Mas aberta aos jovens — diz o presidente de Lucas, José Luis Davalle, o Zequinha de Lucas. — E como somos de uma comunidade carente, estamos sempre com os portões livres, com ensaios gratuitos, para os amigos se sempre se aproximarem — continua ele.
E é assim que acontece. No ensaio do fim de semana passado apareceram um dos cantores da Mangueira, Ciganerey, e integrantes da União de Vaz Lobo, outro tradicional agremiação que acabou virando bloco nos últimos anos. E quem mais viesse seria bem-vindo. Sem rancor algum, integrantes na quadra afirmavam que o crescimento de escolas próximas, como a Imperatriz Leopoldinense e a Acadêmicos do Grande Rio, acabou enfraquecendo o Galo de Ouro. Mas todos faziam questão de contar suas glórias. Lembram o campeonato da Capela, em 1960. Recordam que o primeiro carnavalesco da Unidos de Lucas foi Clovis Bornay, em 1967, quando a agremiação foi quinta colocada, à frente da então toda poderosa Portela. Que a primeira madrinha da escola foi Elizeth Cardoso. Que foi lá que despontou a porta-bandeira da Beija-Flor, Selminha Sorriso, ainda como passista. E que em o carnavalesco Max Lopes assinou sozinho seu primeiro desfile, em 1976. Ou que antes de a bateria da Portela ser conhecida como Tabajara do Samba, era a da Capela que tinha esse nome. Além de terem saído de lá três cidadãos samba: Jorginho Zacarias, Altair Cardoso e Anatólio Izidoro.
Ao fundo do poço, a escola chegou em 2011, quando desfilou na última divisão do carnaval, o então Grupo de Acesso E (hoje Série D). Mas, de lá para cá, foram duas vitórias seguidas. O que, garantem os torcedores, reacendeu a chama da esperança de a agremiação voltar à Sapucaí. Desejo que eles podem realizar daqui a duas semanas, caso sejam campeões do terceiro grupo, com o enredo sobre a literatura infantil.
Vizinha Faladeira desfilará na última divisão do carnaval
A difícil situação de desfilar na Série D vive hoje a Vizinha Faladeira, escola oriunda da Zona Portuária do Rio. Tanto que a agremiação, que na década de 1930 era considerada uma das mais ricas da cidade — tinha até o apelido de Vizinha Rica —, fará seu desfile com dois objetivos principais: o primeiro, de ser campeã, para ascender à Série C; mas também não tropeçar e correr o risco de ser rebaixada à liga dos blocos, o que acontece com as últimas colocadas do grupo.
Por motivos óbvios, o abismo do desfile que prepara a azul, vermelha e branca em relação às agremiações do Grupo Especial é enorme. Numa escola do primeiro grupo, os gastos podem chegar a R$ 15 milhões, para uma apresentação com até oito alegorias e mais de 4 mil componentes. O contingente da Vizinha, de 480 integrantes, caberia em apenas quatro ou cinco alas do Acadêmicos do Salgueiro ou da Unidos da Tijuca. A verba de subvenção que a tricolor recebeu foi de apenas cerca de R$ 40 mil (o que não seria suficiente para vestir uma única ala de luxo numa no Especial), apesar de a escola ter um carnaval orçado em cerca de R$ 100 mil. E a agremiação se apresentará com apenas uma alegoria (o número máximo permitido na Série D!) e dois tripés.
Enquanto isso, o que poderia dar um fôlego a mais à Vizinha, a revitalização do Porto, tem se transformado numa pedra no sapato. Recentemente, a agremiação foi despejada de sua quadra, no Santo Cristo. Provisoriamente, ensaia numa área cedida na Rua Gamboa, em frente à Cidade do Samba, com a esperança de ganhar uma nova sede, na Rua Senador Nabuco.
— O bairro tem sofrido uma valorização muito grande, que reanimou o fluxo de cultura na região. Mas a escola ainda não foi beneficiada com isso, ao contrário do que vem acontecendo com blocos tradicionais, como o Fala Meu Louro. Não temos feito súplica alguma ao poder público. Andamos com as próprias pernas, com o nome da escola debaixo do braço, para tentar reerguê-la — diz Thiago Lepletier, vice-presidente da tricolor. — Hoje, a grande maioria dos diretores da escola são jovens, com idade próxima aos 30 anos. O que nos une é a bandeira da Vizinha. Todos somos apaixonados — continua ele, de apenas 27 anos.
O sonho desses jovens que só ouviram histórias do passado de glórias da Vizinha, claro, é voltar a desfilar entre as grandes. O que não acontece desde a década de 1930. Na época, a Vizinha era uma das agremiações mais inovadoras do carnaval. Levou para os desfiles limousines e cavalos na comissão de frente, introduziu a ala das damas com sombrinhas, confeccionou instrumentos com barrica francesa, iluminou a escola com lampiões com luz a carbureto (um luxo para a época),
transformou os estandartes em bandeiras, teve a primeira porta-bandeira negra e a primeira ala mirim. E, para o carnaval de 1935, contratou os cenógrafos irmãos Garrido, dos melhores do início do século passado, para confeccionar seu carnaval, numa espécie de introdução da figura do carnavalesco nas agremiações.
Já em 1939, com o enredo “Branca de Neve e os Sete Anões”, foi a responsável pelo que é considerado o desfile mais rico da década — e também um dos mais polêmicos. O enredo que fazia menções a personagens não brasileiros foi o gancho para que pedissem a desclassificação da Vizinha. No ano seguinte, a escola se revoltou. Desfilou até o meio da Avenida. E, em frente aos jurados, voltou atrás, exibindo uma faixa com o recado: “Devido às marmeladas, adeus carnaval. Um dia voltaremos”.
E dessa forma se fez. Por um longo período de quase 50 anos, a Vizinha não participou das disputas. Só em 1989 que a agremiação retornou. Mas, desde então, o mais longe que chegou foi ao Grupo de Acesso (atual Série A), onde revelou, nos anos de 1994 e 1995, o mais estrelado carnavalesco da atualidade, Paulo Barros, atualmente na Unidos da Tijuca.
Ponte e Em Cima da Hora brigam para voltar à Sapucaí
É à Série A que lutam para voltar outras duas escolas que já fizeram sucesso: Em Cima da Hora e Unidos da Ponte. A primeira, de Cavalcante, é dona de um dos mais antológicos dos sambas enredos, “Os Sertões”, de 1976, de Edeor de Paula, além de outras composições laureadas, como “33, destino D. Pedro II”, de 1984. Este ano, falando de João Nogueira, tem sido apontada uma das favoritas.
Vai disputar com outras 12 escolas, quatro delas que também já estiveram no Especial: além de Lucas e Ponte, o Arranco e a Villa Rica. A Ponte, por exemplo, que já esteve dez vezes entre as grandes, com belos sambas e enredos, como “E eles verão a Deus”, de 1983, e “Oferendas”, de 1984. Agora, tenta se reerguer. E afirma que escolas mais antigas e experientes do grupo podem levar vantagem para as recém-criadas justamente devido à tradição, que as fazem, por exemplo, não enfrentar tantos problemas para compor o mínimo de baianas (35) exigido pelo regulamento.
— Nossos componentes migram para as escolas do Especial, como Beija-Flor e Grande Rio. Mas não deixam de desfilar conosco. Todas as escolas do grupo têm enfrentado problemas para formar as alas das baianas, que não estão se renovando. No nosso caso, o problema é amenizado — diz Nelson de Oliveira Filho, presidente da agremiação de São João de Meriti, filho de porta-bandeira da extinta escola Tamarineira.
Mesmo com essa fidelidade e embora os recursos sejam poucos, ele conta que as agremiações da Intendente normalmente têm que doar 100% das fantasias para conseguirem que os componentes desfilem.
— Não conseguimos vender nada. Dão R$ 1 mil numa fantasia do Grupo Especial, mas não dão R$ 100 numa da Intendente. Carnaval é coisa de doido mesmo. Começamos a trabalhar em agosto para desfilar 50 minutos em fevereiro — afirma ele.
Apesar dessas dificuldades, todas essas escolas têm algo em comum: o orgulho do que já fizeram e continuam fazendo pelo samba. Ai de quem chamá-las de pequenas. Preferem o termo de “menor investimento financeiro”. E têm razão. Não podem ser pequenas agremiações com tantas histórias e luta para manter a tradição do samba viva.
Uma união que, para alguns, separou
Já estão prestes a completar 47 anos da fusão da Aprendizes de Lucas e da Unidos da Capela, que formaram a Unidos de Lucas, em 1966. Mas essa união, de fato, por vezes parece não ter se concretizado por completo. A rivalidade entre as duas agremiações no passado era tamanha que não raramente o bairro de Parada de Lucas assistia a discussões fervorosas entre as duas torcidas antes, durante e depois do carnaval. Tanta que, quando as duas agremiações decidiram se juntar, houve quem não aceitasse. Muitos da Aprendizes (verde e branca) migraram para a Mocidade Independente e para o Império Serrano, das mesmas cores. E integrantes da Capela foram, por exemplo, para a Portela, igualmente azul e branca.
Em Lucas, entre os mais velhos que permaneceram, quase todos fazem questão de distinguir suas origens: uns da Aprendizes, outros da Capela. E contam as vantagens de cada escola. A primeira escola elegante, a outra dona de uma das melhores baterias das décadas de 1950 e 1960.
— Minha origem é a Capela. Ainda hoje não aceitei a união — afirma um dos mais antigos e ilustres componentes da escola, Beto Quarenta, de 78 anos.
Até um dos maiores nomes da escola, o cantor e compositor Elton Medeiros, que era Aprendizes, dizem na agremiação que não vai até lá devido à fusão. E mesmo na religiosidade, tão comum às escolas de samba, essa divisão é notada. A Capela era devota de Nossa Senhora da Conceição. A Aprendizes, de São Sebastião. Hoje, na quadra de Lucas, estão lá os dois santos. E mais dois também adotados na devoção de seus componentes: São Jorge e São Justino de Lucas.
Enrolar a bandeira: drama do qual as escolas fogem
Enrolar a bandeira. No jargão carnavalesco, significa uma agremiação deixar de desfilar. Ao longo da história, dezenas tiveram esse destino inglório. Escolas que na memória da maioria acabaram esquecidas, mas que ainda vivem nas lembranças dos sambistas mais inveterados. Essas memórias que têm feito um grupo de jovens resgatar uma das escolas mais antigas do Rio, a Unidos de Bangu. Fundada em 1937, a vermelha e branca havia desfilado pela última vez em 1997. Mas volta em 2013, na Série C (quarta divisão). Primeira agremiação da Zona Oeste, em 1962, por exemplo, a escola foi a campeã do Grupo II (a segunda divisão da época), à frente de escolas hoje poderosas, como a Beija-Flor, a Imperatriz Leopoldinense, a Unidos da Tijuca e a Vila Isabel. No ano seguinte, foi nona colocada no Grupo I (hoje Grupo Especial), à frente, de novo, da Beija-Flor.
Sua volta é um alento para antigos amantes de outras escolas que também foram extintas, mas que ainda tem apaixonados no mundo do samba. É o caso da Tupy de Brás de Pina. “O céu escurece / As nuvens parecem / Grandes rolos de fumaça / Chove no coração do Brasil / O lavrador retira seu chapéu / E olhando o firmamento / Suas lágrimas se unem / Com as lágrimas do céu”, dizia trecho da letra da poesia da escola (extinta em 1998) em 1961, no samba “Seca no Nordeste”, entre os melhores da história do carnaval. Ou a Independentes de Cordovil, agremiação que nasceu Independentes do Leblon, em 1946, e chegou a desfilar no grupo principal, nas décadas de 1950 e 1960. Mas que, após o incêndio na favela Praia do Pinto, no bairro da Zona Sul, mudou de bairro e de nome, junto com a remoção dos moradores da comunidade, resistindo até 1997