23/03/2025

Escolas descumprem lei federal e mantêm bibliotecas sucateadas: ‘Desolador”

Legislação determina que bibliotecas precisam ser geridas por bibliotecários; se no papel a ideia é muito boa, na prática, está longe de atingir as expectativas

“As instituições de ensino públicas e privadas de todos os sistemas de ensino do país contarão com bibliotecas”. Assim é a redação do artigo 1º da Lei Federal 12.244/2010. Doze anos já se passaram, e a realidade ainda está longe de ser a idealizada na legislação promulgada pelo, na época, presidente e agora candidato ao Palácio do Planalto Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Para cobrar o cumprimento da lei pelas autoridades públicas, o Conselho de Biblioteconomia da 6ª Região de Minas Gerais e Espírito Santo (CRB-6) fiscaliza as instituições de ensino.

A lei determina que as bibliotecas precisam ser geridas por bibliotecários. Se no papel a ideia é muito boa, na prática, está longe de atingir as expectativas. Quem traça o cenário atual é Álamo Chaves, presidente do CRB-6, em entrevista à reportagem de O TEMPO.

“A lei deu um prazo de dez anos para que as instituições cumprissem o estabelecido, e isso venceu em 2020. Só que a realidade do país está longe de ser o que esperávamos, sobretudo na rede pública e estadual. Estamos fazendo uma força-tarefa para conscientizar os gestores sobre a necessidade de se fazer a lei cumprir”, diz.

Chaves conta que, perante a legislação vigente, cada biblioteca precisa ter, no mínimo, um livro para cada aluno matriculado. “É direito do estudante ter acesso à biblioteca. Porém, o que temos não são bibliotecas, mas uma sala com amontoados de livros e materiais antigos. A situação é desoladora, e tentamos corrigir isso”. Diante da legislação sendo descumprida, o CRB-6 fiscaliza as escolas como forma de cobrar o pleno cumprimento da lei.

No mês de julho, os bibliotecários fiscais do conselho, conforme divulgado nas redes sociais do CRB-6, realizaram 118 fiscalizações em bibliotecas de nove cidades de Minas Gerais. Dezenove instituições foram encontradas sem bibliotecas, 37 bibliotecas sem bibliotecários, além de dois bibliotecários sem registro. 

A situação, segundo Chaves, é pior na rede pública estadual, já que nela não existe o cargo de bibliotecário. “Nenhuma escola do Estado tem bibliotecário, o que há é o professor de uso de biblioteca. Em geral, pegam professores afastados, pedagogos e os colocam nas bibliotecas. Isso é afrontoso à lei, pois somente o bibliotecário pode gerir esses espaços. Outros profissionais podem trabalhar com ele, desde que recebam orientações dele. Minas é a situação mais crítica do país”, alerta.

Nas rede pública de Belo Horizonte e na particular, a realidade é mais animadora. “BH é um caso à parte e um pouco melhor, pois quase todas as escolas têm bibliotecários. No setor privado também é um pouco mais tranquilo. Mesmo assim, temos um caminho longo para que 100% das escolas particulares tenham bibliotecários”, pontua.

Diante do cenário encontrado, o presidente do conselho reforça a necessidade das fiscalizações e de campanhas cobrando o cumprimento da lei. “Estamos fiscalizando sistematicamente para que o governador e os deputados estaduais criem um Projeto de Lei (PL) para resolver o problema da rede estadual”, explica.

Chaves revela que a cada fiscalização, quando é percebida alguma irregularidade, uma multa é aplicada. “Um auto de infração é redigido na hora, e uma cópia é enviada para quem gerencia a unidade. Por exemplo, se for escola estadual, é para a Secretaria de Estado de Educação (SEE-MG). Eles têm um prazo de 30 dias para regularizar. Se isso não acontecer, um julgamento ocorre no conselho”.

Uma multa de R$ 4.000 a R$ 5.000 é aplicada e, se for constatada reincidência, o preço é dobrado. “O objetivo é forçar o governo a cumprir a lei, pois quando dói no bolso temos mais chance (de resolver o impasse)”, diz.

Para denunciar irregularidades em bibliotecas públicas ou privadas, basta acessar o site do Conselho ou enviar as informações pelo e-mail crb6@crb6.org.br. As denúncias são investigadas sob sigilo.

‘Tentei ajudar’: frustração e pedido de exoneração 

*Paula é bibliotecária graduada pela Universidade de Minas Gerais (UFMG) e passou no concurso público para trabalhar em uma escola municipal na região metropolitana de Belo Horizonte como professora. A pedido da entrevistada, o nome dela e o da cidade não serão publicados. 

Vendo o “abandono” da biblioteca da instituição ela chegou a procurar os responsáveis pela área – secretário de Educação, diretoria da escola – para poder ajudar a gerir o espaço. “A biblioteca estava subutilizada e nem sequer tinha um auxiliar. Era um monte de livro espalhado. Alunos e professores ficavam perdidos por lá. Perguntei se poderia ajudar, mas não aceitaram”, relembra.

Durante um período, Paula precisou se afastar da sala de aula por questões de saúde. Naquele momento, ela chegou a pensar que seria realocada para trabalhar na biblioteca, mas não foi o que aconteceu. “Fui de porteira a telefonista, fiquei cuidando das crianças no recreio. Me colocaram para fazer de tudo, menos na biblioteca, sendo que o espaço estava todo desorganizado e até mesmo fechado”. 

A situação da escola fez com que Paula se sentisse frustrada e a fez tomar uma decisão. “Achei que estando na escola poderia contribuir para melhoria do espaço da biblioteca, pois todos sabem da importância da leitura no desenvolvimento dos estudantes. Eu me sentia frustrada, pois mesmo formada em uma das melhores universidades do Brasil, eu não conseguia compartilhar tudo que aprendi com a sociedade. Percebi também que os responsáveis pela escola não queriam sair da zona de conforto. Acabei pedindo exoneração no começo deste ano”, revela.

Paula cobra o cumprimento da lei federal e ressalta a quantidade de profissionais qualificados que existem. “Tudo está fácil de resolver, pois temos mão de obra qualificada. É revoltante ver as escolas do jeito que estão, abandonadas e sem projetos. É um desdenho absurdo”.

Reforçando a afirmação de Paula, Chaves pontua a importância do bibliotecário. “Ele é que faz toda organização do acervo, elabora eventos, projetos de incentivo à leitura. Estudos mostram que em escolas com bibliotecários, há melhores índices de aprendizagem, ou seja, o bibliotecário faz toda diferença. A lei veio para garantir acesso ao conhecimento, cultura e ciência por meio dos serviços prestados nas bibliotecas. É uma pena que estamos longe de garantir os direitos”, conclui Chaves.

O que diz o governo de Minas

Procurado por O TEMPO, o governo de Minas, por meio da SEE-MG, informou que “nas bibliotecas da rede estadual de ensino, a função de Professor para Ensino do Uso da Biblioteca (PEUB) segue a Resolução 4.672/2021, que regulamenta o quadro de pessoal da rede”. “O PEUB tem a função de mediar atividades dentro da biblioteca escolar, desenvolvendo ações e estratégias que têm por objetivo incentivar as práticas de leitura”, afirma em trecho da nota enviada.

As vagas para essa função, segundo a pasta, são preenchidas observando os seguintes critérios de prioridade: professor regente de turma excedente, prioritariamente que possua curso superior de biblioteconomia; professor efetivo ou estabilizado regente de turma que possua curso superior de biblioteconomia; e professor efetivo ou estabilizado regente de turma.

Nota da SEE-MG na íntegra

“A Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais (SEE/MG) informa que nas bibliotecas da rede estadual de ensino a função de Professor para Ensino do Uso da Biblioteca (PEUB)  segue a Resolução 4.672/2021, que regulamenta o quadro de pessoal da rede. O PEUB tem a função de mediar atividades dentro da biblioteca escolar, desenvolvendo ações e estratégias que têm por objetivo incentivar as práticas de leitura. O PEUB trabalha em articulação com os outros professores da escola para definir e articular as atividades, bem como estimular a  participação dos estudantes em projetos de incentivo à leitura da escola como Clube de Leitura, intercâmbio de leitores, encontro com autores, escritores, jovens escritores (coletivos e individuais), piquenique literário, quiosque de leitura, dentre outra ações pedagógicas.

As vagas para essa função são preenchidas observando os seguintes critérios de prioridade: professor regente de turma excedente, prioritariamente que possua curso superior de biblioteconomia; professor efetivo ou estabilizado regente de turma que possua curso superior de biblioteconomia; e professor efetivo ou estabilizado regente de turma”.

*Nome fictício

 

 

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