Como a baiana Irmã Dulce, de origem aristocrática e dona de forte determinação, soube cercar-se de empresários e políticos para construir a maior obra social do País
A sabedoria e resiliência de nosso povo diante de tanta adversidade e iniquidade social, coisas que vêm historicamente de muito longe, colaram em Deus a nacionalidade brasileira. Faltava-nos, no entanto, uma santa genuinamente nascida no Brasil, uma vez que, no recorte do gênero masculino, já há o paulista Santo Antonio de Sant’Ana Galvão. Carecíamos, pois, de uma mulher? Agora, não mais. Nesse domingo 13, em meio ao Sínodo de Bispos sobre a Amazônia, que está se realizando na Itália, o papa Francisco canonizará no Vaticano a baiana Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes, a quem são atribuídos centenas de milagres e cerca de quatorze mil intercessões. Claro que por esse nome aristocrático ninguém a conhece. Mas fale nos quatro cantos do País, ou, por exemplo, no Vietnã (não é força de expressão não, é no Vietnã mesmo), fale de Irmã Dulce dos Pobres e raramente alguém não saberá de quem se trata. Pois bem: Irmã Dulce, nascida rica em Salvador em 1914 e falecida pobre na mesma cidade em 1992, veio ao mundo em berço de ouro para dedicar a sua vida aos doentes e mendigos das calçadas manjedouras, carentes de pão e prece. E ela será a primeira santa brasileira.
Dentre a vastidão de milagres relatados em seu nome, dois deles foram basilares. Ao dar à luz, Cláudia dos Santos, hoje com 41 anos, sofreu uma hemorragia ao longo de dezoito horas e acabou desenganada pelos médicos. Ela conta que um padre foi vistá-la no hospital e lhe perguntou se acreditava que Irmã Dulce poderia salvá-la. A resposta foi sim. Segundo Cláudia, o religioso clamou por sua vida e o sangue estancou. O outro miliagre é relatado pelo maestro José Maurício Moreira, 50 anos. Em entrevista ao “Vatican News”, ele afirmou que era deficiente visual, não enxergava nada, e que certa vez pediu em pensamento para a Irmã lhe aliviar a dor do glaucoma: “de um momento para o outro, passei a enxergar normalmente”. Uma história, digamos, que vale destaque porque não deixa de ser curiosa, envolve uma senhora que tinha unha encravada no pé e tropeçara em um altar. Enquanto blasfemava e clamava por Dulce, a unha desencravou. Esse caso não vai constar nos austeros registros do Vaticano, mas na voz do povo, que é a voz de Deus, vira assunto recorrente quando transborda de turistas o velho Pelourinho – para os amantes da Bahia, o maravilhoso e histórico Pelô.
Na abertura do Sínodo de Bispos sobre a Amazônia, o papa criticou duramente o desleixo com que o governo brasileiro tolera as queimadas e a devastação da natureza, dizendo, de forma indireta, que tal fogo não é a “chama de Deus” — ele quis falar, mesmo, que a chama da floresta é a que arde no inferno. Os oitenta e oito bispos brasileiros que foram à Itália lembraram-se, então, de uma coincidência: quando tinha treze anos, a franzina Maria Rita deu um safanão em um menino robusto e mais crescido que despetalava uma roseira em seu quintal: “a natureza é obra de Deus e não pode ser estragada”. Esse cuidado com o meio ambiente perdurou por toda a sua existência de setenta e sete anos.
Profissão de fé
De volta à pré-adolescência, foi também aos treze que “sentiu o chamamento para ingressar em um convento”, em Salvador. Viu-se barrada devido à idade, mas o temperamento de uma Souza Brito Lopes Pontes não comungava o verbo desistir. Viajou para Sergipe e entrou, na cidade de São Cristovão, para a Congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus. Formou-se professora (era péssima lecionando) e retornou a Salvador, já feitos os votos perpétuos e a profissão de fé. A essa altura da vida, Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes já era a Irmã Dulce dos Pobres, o mesmo nome com o qual será agora venerada nas igrejas e santuários, nas romarias e charolas, nos becos e barracos, nos pequenos nichos iluminados por lampadinhas azuis que abençoam os bares, asilos, hospitais e prostíbulos — na alegia e na tristeza, na saúde e na doença, na cabeça e imaginação daqueles que nada mais possuem na vida além da cabeça para imaginar.
A mesma determinação com que foi para Sergipe e voltou à Bahia, a mesma determinação com que militou no Círculo Operário da Bahia e ajudou comunidades em palafitas, a mesma determinação com que labutou no Hospital Santo Antonio e fundou a sexagenária Obras Sociais Irmã Dulce, a santa brasileira demonstrou ao cuidar de crianças paupérrimas e ao pedir auxílio financeiro. Foi assim que quase acabou presa por arrombar portas e janelas de casas abandonadas para abrigar mendigos e por furtar objetos de lojas de material de construção. Sob o ímpeto da mesmíssima força e sem o menor constragimento no sangue aristocrático, ela pedia ajuda financeira para as suas obras sociais a grandes empresários e aos poderosos da política. Ao longo da jornada, deles foi se tornando amiga e confidente. Certa vez, o então presidente João Figueiredo lhe disse brincando: “vou assaltar um banco para ajudá-la”. Ela respondeu: “assaltar um banco? Me chama, vou junto!”. Risada geral!
FONTE: https://istoe.com.br/a-primeira-santa-brasileira/
Dulce e os políticos
Os seus principais amigos e benfeitores, no entanto, foram o ex-governador Antonio Carlos Magalhães e o ex-presidente José Sarney, de quem possuía o número reservado do telefone em seu gabinete no Palácio do Planalto. Madre Teresa de Calcutá dava aos pobres pedindo um pouco aqui, um pouco acolá. Dulce soube cercar-se dos donos do poder e, por intermédio deles, ajudava quem a procurasse. Quando o escritor Paulo Coelho fugiu de uma das internações psiquiátricas impostas pelo pai, no Rio de Janeiro, foi a Salvador conversar com ela. Ao final, Dulce soube que aquele desconhecido jovem de 17 anos não possuía dinheiro para retornar a sua cidade. Deu-lhe um papel assinado, no qual escreveu: “vale uma passagem”. Na rodoviária, Paulo mostrou o bilhete ao motorista que permitiu o seu embarque sem pestanejar. Na semana passada, o escritor tornou pública sua doação de R$ 1 milhão para as obras sociais, como resposta ao que chamou de “canalhice” dos políticos que vão à canonização com dinheiro público. Conquistar autoridade distribuindo carinho, essa é a grande arte. E assim foi Dulce, como o doce adagietto da “Oitava” de Gustav Mahler — delicado mas soberano e imperioso trompete evocando Deus.