A Mocidade Independente de Padre Miguel vai para o Sambódromo da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, em 2024, com o enredo “Pede caju que dou… Pé de caju que dá!”. O tema foi anunciado um pouco mais de um mês depois do previsto. Uma disputa na política interna da agremiação resultou em uma decisão judicial que não permitia a realização de eleição da nova diretoria e nem o anúncio do enredo, o que só ocorreu em 28 de junho, após a reversão de parte do impedimento pela Justiça.
A escola, que será a primeira do Grupo Especial a entrar na avenida na segunda-feira de carnaval, dia 12 de fevereiro, foi a última a divulgar o enredo para 2024, assinado pelo carnavalesco Marcus Ferreira e pelo jornalista e escritor Fábio Fabato, autor da sinopse.
“A conjuntura [com a questão judicial e de estruturação da escola] levou a isso. Levou a gente a trazer um tema rico de história, de conteúdo e com a leveza de abrir o carnaval de segunda-feira. Foi muito escolhido por isso também”, disse o carnavalesco em entrevista à Agência Brasil.
O período em que a decisão judicial ainda estava valendo por completo foi de muita apreensão para a equipe de carnaval que precisou segurar um enredo pronto sem poder apresentar, disse Fábio Fabato.
“As pessoas começaram a cobrar muito, dizendo que só a Mocidade não tinha enredo. Para nós, que já sabíamos qual era o enredo e já estávamos trabalhando nele, havia, pelo menos, dois, três meses, ficávamos pensando que tinha que sair logo”.
O autor da sinopse tem uma relação grande com a Mocidade. Além de escrever a biografia da escola, foi autor dos enredos de 2018 sobre a Índia; de 2020 sobre a cantora Elza Soares e em 2022 sobre o orixá Oxossi, padroeiro da escola.
Segundo o jornalista, em 2023, na chegada de Marcus Ferreira na verde e branco da zona oeste do Rio de Janeiro, o carnavalesco preferiu fazer o enredo a partir de uma ideia de autoria própria, e ele não participou daquele desfile. Passado o carnaval de 2023, no qual a Mocidade ficou em 11º lugar e quase foi rebaixada, a escola e o carnavalesco o chamaram para discutirem como seria a proposta do enredo, que pretendiam ser leve.
“A Mocidade vai abrir o desfile de segunda-feira e está em um período que precisa se reconstruir. Fomos beber na fonte do Fernando Pinto, que é um grande carnavalesco da Mocidade nos anos 80 e tratou a escola de modo tropicalista, e a gente teve essa sacada de fazer o enredo sobre a fruta caju que é absolutamente brasileira ao contrário da banana, que não é brasileira. A gente brincou que é morder a carne do caju e sentir o sabor do Brasil”, disse Fabato.
“A gente tem visto muitos enredos literários, muito academicista, e a Mocidade quis sair na contramão e fazer algo leve, algo inédito, e através de nossa pesquisa com a colaboração do Fabato, a gente criou uma narrativa diferente daquela que impregnou muito o carnaval na década de 90, de que os artistas pegavam um tema e criavam uma história dentro das vocações de que a Mocidade possui de ser uma escola tropicalista, de olhar na sua história um pouco da brasilidade do nosso país”, explicou o carnavalesco.
Tanto Fabato como Marcus lembraram o nome do carnavalesco Fernando Pinto, que foi responsável por parte importante desses enredos que eles classificam como leves e representativos da brasilidade, como Tupinicópolis. Fernando Pinto estreou em 1980 e ficou em segundo lugar com o enredo Tropicália Maravilha. Ele permaneceu na escola até 1987, quando morreu.
Inesperado
A ideia de usar o caju como enredo apareceu de forma inesperada. “Eu tinha até outras ideias, mas foi um enredo que surgiu com um sentimento. Eu estava na praia lendo uns artigos e passou um vendedor de castanhas. Fiquei olhando e falei castanha de caju. Na hora entrei na internet para ver o que essa fruta representa para a gente, e me encantei com a história, e falei caramba é a cara da Mocidade. No dia seguinte, trouxe para a escola e prontamente começaram a entender que seria um caminho que a gente seguiria para o carnaval do ano que vem”, revelou o carnavalesco sobre a origem da escolha do enredo.
Depois disso, ele levou a ideia à diretoria da escola que, prontamente, entendeu ser um momento propício de falar um pouco da fruta que é tão brasileira.
De acordo com o carnavalesco, para quem acha que cada carnaval tem um sentimento, a divulgação do enredo deu um certo alívio. No próximo carnaval, a Mocidade quer se estruturar ainda mais e fazer o melhor na avenida. Para o carnavalesco, o enredo foi bem recebido pela escola.
“A gente está muito feliz com a recepção do enredo por parte da torcida da escola, que já estava nesse clamor. Foi a última a anunciar o enredo devido a essa burocracia, mas a gente não parou de trabalhar. O processo criativo meu e da minha equipe de criação a gente seguiu e esperávamos esse momento. Graças a Deus foi resolvido e agora é projetar o melhor, tirar as melhores ideias, tirar o melhor do papel”, disse Marcus.
“Recebi muitas mensagens dos independentes e de muita gente do carnaval elogiando justamente esse frescor. É um enredo que transmite alegria pelo tema”, disse.
Atraso
O atraso no anúncio do enredo foi motivo de preocupação de Fabato e Marcus, porque é a partir da divulgação da sinopse que os compositores trabalham na criação do samba enredo e ainda tem o processo de seleção do samba feita em etapas por eliminação até chegar ao vencedor que vai ser cantado na Passarela do Samba pelos componentes da verde e branco da zona oeste do Rio.
“Há um cronograma a cumprir, tipo de samba enredo, agora tem uma disputa de samba. Isso impacta completamente na organização da escola. Tem que decidir o samba até outubro. Tem a gravação do disco [com os sambas de todas as escolas do Grupo Especial], que agora é online, mas tem que gravar oficialmente. Ainda bem que respeitaram o prazo e a escola ainda está a tempo de caminhar bem”, explicou Fabato, acrescentando que a disputa de sambas deve começar no início de agosto.
“A ideia é que venha um samba muito feliz, muito pra cima. A gente vai pedir isso aos compositores. Que eles se inspirem a partir dessa coisa tropicalista do caju”, adiantou Fabato, destacando que o enredo aposta na importância histórica e econômica e na exaltação do Brasil ligado à terra. “A gente quer um samba nessa linha”.
Marcus disse que ele e Fabato se programaram para que o atraso não influenciasse no carnaval. A principal preocupação, segundo ele, era com o projeto que leva muito tempo para ser executado. O carnavalesco acrescentou que o processo de criação não foi interrompido para que a Mocidade chegasse agora em julho com o planejamento certo.
“A gente sabe que vai ter um tempo menor que as outras escolas, mas o importante é que o processo criativo de sinopse e de criação de roteiro de informações para os compositores já estava pronto. A gente só aguardava a questão judicial ser resolvida para seguir com o planejamento. A gente acredita que não vai influenciar nas obras dos compositores”, disse, acrescentando que agora começa a fase de tirar dúvidas dos compositores sobre o enredo para que eles consigam expressar no samba enredo o melhor do tema.
O trabalho no barracão na Cidade do Samba, na região portuária do Rio de Janeiro, como em outras escolas, está na etapa final de desmontagem das alegorias do desfile deste ano. De acordo com Marcus, em geral, as escolas costumam aproveitar as ferragens dos carros para não precisar comprar esse tipo de material. “A gente já vai dar seguimento agora do início da confecção dos protótipos, que é tirar do papel as novas fantasias”, disse.
“Pede caju que dou… Pé de caju que dá!”
Carnavalesco: Marcus Ferreira
Enredo: Marcus Ferreira e Fábio Fabato
Sinopse: Fábio Fabato
“Assumir completamente tudo o que a vida dos trópicos pode dar, sem preconceitos de ordem estética, sem cogitar de cafonice ou mau gosto, apenas vivendo a tropicalidade e o novo universo que ela encerra, ainda desconhecido”. (Breviário do Tropicalismo, Torquato Neto)
Carne de caju
O poeta sempre mira a própria terra para trançar letras e alçar voos. Nada mais natural que ele e seus parceiros, além de tantas outras inspirações, buscassem uma fruta nativa, farta e com certo capricho corporal para explodir em cores toda a revolução tropicalista. Pudera! A suculência agridoce que seduz os lábios, diz a ciência, é mero penduricalho acessório. O fruto, no duro, está no alto, qual um cocar, black power ou coroa: a castanha. Mas quem é bobo de não se lambuzar com tudo?
No país de inversões igualmente marcantes e da arte que passou a transgredir e realçar o profundo da brasilidade, nosso recado carnavalizado tá na mesa: o redemoinho antropofágico da Tropicália cravou os dentes também em carne de caju. Yes, nós temos pra chuchu! A partir dele, simbora abocanhar o Brasil de tantas porções e sabores? Caldo de mel e travo, como o cotidiano, “o poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia. Resplendente, cadente, fagueira, num calor girassol com alegria. Na geleia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia…”.
Quem não possui um cajueiro de copa verdinha no lado esquerdo do peito? Pinta de rim, mas convite ao pecado. Caju-de-árvore, caju-anão, caju-rasteiro, caju grandão e pequenino, caju amarelo, rosado ou pra lá de vermelho. Protagonista de soneto composto, quiçá, na banheira de Vinicius: “consistência de caralho e carrega um culhão na natureza”. O materialismo elementar pelo avesso. Que mancha, que arde, que abunda! Que chove. Exagerado e a prumo. Tupi acayu a pau.
Cajuí or not cajuí, that is the question! Faremos dele carnaval!
Anacardium occidentale
E vamos de mergulho no passado, contado em castanhas guardadas pelos povos originários. Cada caju na cabaça, uma primavera. O povo do índio Porã, expulso do lugar de origem, só encontrou felicidade quando floresceram as castanhas guardadas numa cabaça especial pelo sábio Tamandaré, seu avô, e que estavam perdidas. Veio a seguir o tempo de caju, de abundância, já que a “noz que se produz”, para além do beabá da Botânica, semeia fartura, memória e afeto. Nas cerimônias que envolvem o Torém, ritual sagrado dos Tremembés, os espíritos dos indígenas que cantaram para subir proseiam com os vivos. O entornar desbragado de mocororó, ou vinho de caju, rega a raiz das tradições – já que a festa esbarra na época de colheita.
Contam os sabidos que as tribos do interior buscavam o litoral enfeitado pelas árvores abarrotadas. As ditas “Guerras do Caju” surgem assim, e bem antes de Cabral, mas ganharam mais adstringência quando as treze naus apontaram no horizonte. Aí cresceu o olho gordo pra ordem de tonelada! O portuga logo melou os bigodões de interesse. O francês, mon amour, pôs na boca, nos bolsos e deu firma em célebre ilustração. Já ao dono real da terra… Bem, restou lutar – borduna em punho – contra as mumunhas do afanar institucionalizado, nosso amargor histórico.
O quiproquó entre os dois cajueiros inspirou torcidas organizadas, teorias rocambolescas da Biologia, um “mede aqui, mede acolá” ainda distante do apito do juiz. Mas enquanto não existe régua com o devido amém de ambos os lados, tudo é poesia para a castanha-commodity e seu pedúnculo famoso: seguem campeões de audiência entre paladares gringos e nossos. Autênticos reis do mundo. Reis à caju.
Caju-brasuca
Entre pelejas e causos da sabedoria dos povos – com delírios por excesso de caju fermentado nas ideias ou verdades incontestes – o filho legítimo dessa aldeia gigante grudou como “noda”. Expressão de memória coletiva, nos lábios de mel da literatura, economia musculosa, holofote dos anjos ou demônios que nos conectam ao sentimento e calorzinho de nação. Castanha-mátria, caju-pátria. Confidentes dos nossos profundos quintais interiores.
Nas curvas do destino e desatinos de Macunaíma, tão metáfora da vida brasileira, ah!, lá está o caju a marcar e serpentear os seus passos contraditórios. Acompanhante-anti-herói-espelho-meu. Caju-brasuca também na corda bamba com pincel na mão: a feira modernista de Tarsila em contraste com a “cica” memorial da melancólica aquarela de Debret a partir da escravidão. Haja caju para tantas camadas sobre tela! Telas, por óbvio, da mais pura vida real extraída do pé.
Tela do caju-caipi-pop, virado pra dentro industrialmente enquanto as pernocas inda não bambeiam: a própria enciclopédia dos amigos pós-doutores em língua enrolada. Consistente, cortadinho em rodelas, do prato e da polpa, sabor agreste e cerrado, que encanta o doce e o salgado. Para quem quebra castanha coletivamente – a própria alegoria da roda da vida –, gosto de pertencimento compartilhado. Laço. Ou mero pedaço, vá lá.
Tela do caju-família. Vitamina, crendice e mistura que nos inflamam. Das cantigas, do licor e do suco. “Goiabada para sobremesa…”. Refresco. Dedilhar na viola para evocar força e os antepassados. E até compota enfeitadinha, fita e tudo. Remedinho da mamãe. Receita passada como herança no caderninho amarelado que não se empresta nem ao melhor amigo. Sujeito-elo entre a rua e a varanda. Toalha de mesa estendida com água na boca. Pinga. Para participar de brincadeira popular e religiosa: da quermesse à curimba, do sambão ao batidão na esquina de casa.
Tela do caju-moleque. Com travessa de cajuzinhos a perfumar a vivência dos mais experientes: “quando você ia aos cajus, eu já voltava com as castanhas assadas”. Virou também recado reto para o vacilão que resolve brigar de bobeira: “ei, vai tomar caju!”. E segue o bloco! Que contorna a praça e abraça o velho cajueiro, debruçado na fuzarca como bom anfitrião namorador. Rostinhos colados à malemolência do cancioneiro, o fim de festa traz o beijo da morena tropicana, vejam só. Pele macia, saliva doce, sim, vou lhe desfrutar. “Ô, iô, iô, iô”…
Geleia geral
Natural que a geleia geral de sabores acima tenha, de fato, a própria alma da Tropicália, e aí pensamos outra vez no poeta: “existirmos a que será que se destina?”. A dúvida existencialista em meio à ambivalência do fruto-não-fruta parece extrato nosso chupado de canudinho com aquele barulhinho sacana. Ora, existimos para a vocação de fazer cultura popular e da riqueza exuberante da terra, inda que descuidadas. Eis que o Brasilzão mira a água cristalina do velho Atlântico e lá está peladão e sem vergonha: é o seu próprio fruto jamais proibido. Travesso um tanto, travoso para tantos, “totoso” no total.
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