NATALINO SALGADO FILHO *04/09/2021
Moderna à moda antiga – eis um epíteto para nossa São Luís, que no dia 8 chega a 409 anos. De um lado, escadarias amareladas, muretas e postes que teimam em ser o passado; rico patrimônio feito de azulejos e mirantes, casarões que guardam histórias seculares, entre os quais um que não esconde “a íngreme escada onde o desejo subia com seus disfarces”, cenário decantado na constatação poética do piauiense H. Dobal, em sua Cidade Substituída. Em Mirantes II, o mesmo poeta se admira: “(…) Sobre o telhado, o mirante acompanha o tempo que não dorme (…) O mirante não guarda/ os cristais de crepúsculo/nem a dura certeza/ de que uma cidade nos seus azulejos só é perene como a brisa e a nuvem”.
E as igrejas centenárias sopram segredos, rezas silenciosas e corações esperançosos. A propósito, o maranhense Inácio Xavier de Carvalho, em Frutos Selvagens (1894), descreve a dor da toada do sino da igreja de São Pantaleão: “Em minha terra, o sino mais sentido, o mais triste de todo o Maranhão, é o grande sino, há muito erguido/ da velha e secular São Pantaleão…”. Nas ruas do centro, há resquícios aqui e ali de opulência nas “lentas ladeiras que sobem angústias”, entremeadas de praças que ouviram sussurros de juras de amor, encontros furtivos e a alegria de crianças num tempo em que pressa era uma palavra desconhecida.
Atravessamos a ponte: atravessamos o tempo e continuamos sendo nós feitos de ontem e de hoje. Há prédios modernos, um comércio pujante que pouco a pouco se distancia da velha Praia Grande que um dia foi cenário de ricos comerciantes de secos e molhados; escolas, faculdades, hospitais, ruas novas que em nada lembram a arquitetura que estampa postais e cativa a mente do potencial turista. E o asfalto denuncia: estamos no futuro que olha para os anos idos apenas nas gravuras guardadas e estamos sim no presente que foi nosso futuro tão sonhado, a olharmos para o lugar em que nos reconhecíamos.
Hoje, se saudamos as pedras de cantaria alisadas pelo arrastar das vidas contadas em quatro séculos: pedras testemunhas em que dormem segredos que sobre elas calaram; se amamos admirar o pôr do sol sobre telhados suaves de casarões silenciosos e adivinhar as vozes das vidas que neles viveram; se ainda sentimos, como dizia Helen Keller, as camadas de cheiros que ficaram nelas entranhadas como personagens vivos que contam suas histórias dessa forma, também sabemos que a verdadeira identidade de São Luís é a mistura de sua verticalização e de seus traços de vidro e aço.
A identidade da cidade vai alterando a nossa, é verdade, mas cada geração deixa seu testemunho, e nós que hoje existimos e a habitamos, celebramos a nós mesmos que lhe damos vida, mas sabemos também que o que nos define é a história daqueles que vieram antes de nós e dos que conosco vivem entre nós. Tudo é história, mesmo que preferíssemos contar diferente.
Há os que estão nas ruas e calçadas estreitas do centro velho, nos mirantes que nos levam para outro mundo, como o guarda-roupa das Crônicas de Nárnia. Há nossos antepassados que caminham entre nós nos odores como no Mercado das Tulhas. Ali é uma biblioteca de cheiros antigos que nos transportam e quase nos fazem sentir que voltamos no tempo por segundos. Mas há também os cheiros de hoje que o vento se encarrega de misturar, porque somos feitos dos dois lados: ponte e tempo; ilha e istmo.
No mais, somos a beleza que o homem não fez. Somos dádiva: ilha cercada de manguezais onde, ainda hoje, garças, mergulhões e guarás se abrigam nas noites. Somos os que viram a esquina dos rios, pisam as areias brancas e veem o mar do alto de suas janelas, cuja beleza não cessa, cuja poesia – de ontem e de hoje – que eu quero aprender, não dorme, porque há pouco passou por aqui um azulejo ao vento, lá para os lados onde ficam os prédios.
* Médico Nefrologista, Reitor da UFMA, Titular da Academia Nacional de Medicina, Academia de Letras do MA e da Academia Maranhense de Medicina